segunda-feira, 2 de maio de 2016

Timóteo 5:5-6

Tive sede, mas não me movi. Queria evitar os espelhos no caminho até a cozinha.

Sentei-me à luz da janela, a qual havia deixado meio aberta para, de vez em quando, entreolhar o lado de fora. Tanto quanto o quarto, a rua estava vazia, o chão molhado, o céu nublando e desnublando de hora em hora, sem saber se chorava ou não chorava, se anoitecia ou se a luz do dia já era triste o bastante.

Flores por todos os lados. Coroas, arcos, jarros de pálidos crisântemos congestionavam a vista. Não estavam ali de enfeite, mas sim porque o cheiro floral disfarçava o da putrefação.

Esquecido sobre a cama, um corpo. A pele era de um escuro claro, as mãos morreram feito garras, os dentes amarelados como as pontas dos dedos, os cabelos crespos quebradiços espalhados pelo chão e pelo travesseiro, lábios enormes ressecados feito pedregulho. Tinha calos nas mãos e nos pés: nos pés porque vestira sapatos apertados demais durante toda a vida e nas mãos pelas cartas que escrevia incansavelmente. Nunca as enviava. Às vezes, amassava os manuscritos em bolas de papel e enfiava na boca, mastigava, engolia, as dobraduras iam pontudas arranhando a garganta por dentro, tossia do gosto amargo da tinta, nunca cuspia, chorava, arrependia-se. Algumas palavras não conseguia lembrar novamente depois — quando tentava reescrever tudo aquilo que fora goela abaixo. 

A porta do quarto era de madeira como um caixão, a da sala era madeira também, mas caixões podem ser de vidro e do material que quiser que seja, a única exigência é que nunca seja escolha do cadáver. As portas poderiam simbolizar os caminhos, as novidades, desejos profundos, as pernas abertas do mundo, a angústia de não pertencer a lugar nenhum que não se encontre da pele para dentro, chorar é jogar fora o que morreu nas entranhas.

Morrer, morrer, morrer. 

Um dia se abre os olhos e a vida é toda sobre a morte.

Funerais ocorrem o tempo todo. Ao ar livre, entre quatro paredes de cimento, de gesso, de tapume, enfeitadas ou não, sob um teto ou não, há o pranto, o silêncio, a incontrolável risada, de dia, de noite, em oração ou em silêncio, de mãos dadas ou afastadas pelo tempo, a mágoa sempre há, pode-se estar em multidão ou a dois. Há funerais sem cadáver algum.

Tenho cortado limões ao meio e espetado cravos neles. As moscas, no entanto, permanecem. O ruído é insuportável. A morte só é silenciosa para quem morre.

Olhei o lado de fora, a rua vazia, o cheiro forte, os olhos fechados, as mãos como garras, as lágrimas secas, as poças no chão, o forte zumbido, eu não quero morrer, soluço, o lápis sobre a mesa, o sol escondido, a noite nunca chega, eu não quero morrer.

Por favor, não me deixe aqui.


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