segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Manual para grandes viagens.

o importante é ter uma internet
rápida o bastante
pra postar o exato instante
em que o carro capota
(esteja você dentro dele
ou fora)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Escrita automática III

todas as minhas superfícies são
transparentes
quebradiças
desprovidas de
dobradiças

não consigo esconder
o coração acelerado
o estômago vazio
a garganta seca
que se abre,
pronta pro berro desesperado,
que engulo

através da minha pele
que é de vidro
pode enxergar tudo em mim
minhas mudas ofegações
meus pensamentos sem nexo
ou até assustar-se
com o seu próprio
reflexo

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

no quarto escuro
danço valsas sozinho
roo unhas já roídas
pelos dentes do meu tempo
que passa mais lento
que os relógios despertadores
programados para soarem ensurdecedores
quando eu nem dormi ainda

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Escrita automática II

seus amigos não gostam de quem você
realmente é
então vá fingindo
até que eles não notem mais
que você ficou pra trás no caminho
até que você não note mais
que está sempre sozinho
mas você sempre nota
o peito vazio volta
você abre os ouvidos escuta
finge que entende retruca
em cima da sua dor joga terra
cruza os braços se enterra
fundo
no esquecimento

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Métrica.

tem quem narre poesias
como quem descreve o nascer
do sol
ao pé da praia
ou como quem dá entrevista no rádio
as palavras vão limpas
minuciosamente entoadas
rimas muito bem escolhidas
ou como quem esculpe
não me culpe
mas eu, não
escrevo como quem agacha
na beira da estrada
apóia as mãos sobre as coxas
e, com as faces já roxas,
vomita a sopa entalada
já transbordando pela garganta
ou como quem
se segura o dia inteiro
e depois de uma rotina de trabalho amarga
finalmente chega em casa
e se caga
a dois passos do banheiro
também como quem ama demais
pra escrever cartas legíveis
em meio ao desespero mudo
de confessar tudo
mas tem quem escreva como quem esculpe
em mármore
como quem planta uma árvore
não me culpe
sou um poeta que não esculpe
meus versos mais parecem cuspe
do que teses
minhas dores
não vêm num buquê de flores:
despejo-as todas como as fezes
sobre o papel

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Ladeira.

com uma faca de serra
quero arrancar a sua pele

mas não qualquer pele
quero um pedacinho daquela pele fininha
de trás da sua orelha

depois eu poderia costurar o retalho
bem no meio
do meu buço
debaixo do meu nariz
pra ficar te cheirando
sem precisar reviver toda aquela merda
que éramos juntos

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Dentro da boca.

tenho forçado sorrisos
sem querer

parece mais fácil

a boca retorce
angustiada
reajo, finjo
até conto uma piada
e se precisar completo
com uma risada estridente
pra ficar mais convincente

de repente, rio
me afogo

parece mais fácil
parece mais fácil porque
só dói mais tarde

não quero explicar 
porque estou triste
pro seu dedo em riste
ou pra esses olhos que parecem gritar

"só mude de assunto
só mude de assunto
só mude de assunto
eu não vou te ajudar"

então sorrio
só rio
só mudo de assunto
deixo levar meu corpo defunto
que de braços cruzados sobre o peito
por sorte
sorri satisfeito
em seu leito de morte

sábado, 3 de setembro de 2016

Escrita automática I - Amuletos pendurados.

não tenho interesse nenhum
no amor que se dita nas cartas de baralho
pra mim
amor
não é sorte
não é sorte
se a gente pensar
o amor tem mais a ver com a morte
já que tanta gente morre
todo dia todo dia
em nome do amor
não há sorte em mãos dadas com correntes
não há sorte no toque entre dois
só dois
trancafiados pra sempre
num quarto de ilusão
e só um quarto disso
realmente se importou
com o outro
não sei se é sorte esquecer de si
se dividir em dois
e não ganhar nada depois
trevos de quatro folhas
pés de coelho
linhas amarradas no dedo
me convencem mais
que o amor que o destino me diz
necessário.


segunda-feira, 22 de agosto de 2016

As linhas tortas são de meu conhecimento.

não tente me aprisionar
em muitos braços
ou mãos
ou pernas
que eu

e
s
c
o
r
r
o

entre elas
e não grudo
não mancho
não
d
  e
    i
     x
       o
       r
     a
    s
   t
  r
o

nenhum.

Nunca vou recitar.

escrevo sempre que preciso
gritar

na garganta a voz é
baixa
rouca
pouca

quando grito
hesito
evito
tremo dos pés à cabeça
embora ela não esqueça
de quem já gritou comigo

assumo
sou viciado em calar
e sumo
sempre que tenho que falar
vivo de respirações ansiosas,
conversas silenciosas
que acontecem só no olhar,
monólogos me apavoram
e quando os sentimentos afloram
escondo-me
ou choro sem soluçar

escrevo
porque viver de engolir dói
a palavra, no estômago, corrói
abre úlcera
no papel, ela pulsa
convulsa
e sem gaguejar
expulsa
a dor de não saber falar











sexta-feira, 22 de julho de 2016

Vênus em Peixes.


I
hoje, no ônibus,
acho que me apaixonei bem depressa
só não sei se por você
ou pela vontade de saber
o que tanto cê olhava
pela janela

II
do bolo de amor que tenho
parto pedaços desiguais:
o primeiro desconheço,
outra parte me abstenho,
o menor pedaço ama demais,
outro quer dar o que não tenho,
uma fatia é rejeitada,
outra desmancha em muitas mãos,
algumas migalhas pelo chão
cenário caótico comum
a maior parte, que era pra mim, sempre sobra
mas a entrego a qualquer um

III
ao se decepcionar, siga as instruções:
certifique-se de tê-la esquecido quando apaixonar-se de novo amanhã de manhã.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Jardim.

das brechas
as mechas
esticam-se cacheadas
ou encaracolam crespas
debochadas
crescem ao contrário
do que você quer que seja

não esqueça:
logo o tempo passa
e a menina repara
que linda flor desabrochara
no topo de sua cabeça.


segunda-feira, 11 de julho de 2016

raspei fora o resto de você que ficou agarrado na parede mas os cantos são sempre difíceis não importa se a faca é afiada tento com as unhas mas elas estão todas roídas porque passo a maior parte do meu tempo sozinho preocupado com a sua solidão e com o estado das paredes do seu quarto sem saber se você já mandou pintar ou se elas ainda estão sujas de mim mas no fundo eu sei que é bobagem já que as suas unhas sempre foram muito grandes e bonitas e não seria problema nenhum tirar um tempo do dia pra me raspar fora da parede pro chão e depois de uns dois dias já que você não é lá muito caprichoso com limpeza do chão pra uma bolsa plástica que uns três dias depois desce a escada nas mãos de outra pessoa porque você sempre teve nojo de pegar em lixo

sábado, 18 de junho de 2016

Movimento.

dei pra ler os versos dela
é difícil dizer quando
bem que me pego recitando
ouvindo a voz da dor que ela
remenda e vai costurando
aos poucos, no cotidiano
-
a fala que ela tira do peito
rasga a garganta e chega à boca
rumina um gosto suspeito
uiva os versos feito louca
depois penso que sente acelerar o coração
anda embora minha inspiração.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Feriado.

em Janeiro
eu prometi
disse pra mim
que mudaria tudo
até Abril
mas Fevereiro chegou
e tudo mudou
em Março
eu só
queria 
o seu abraço
sem ter que contar
quanto tempo ele dura
a vida é dura
mas pior é não saber
se até Dezembro cura
a vontade de te ver

logo eu 
que nunca lembro
de marcar 
no calendário
os dias em que 
fui feliz

terça-feira, 7 de junho de 2016

Amor em preto ou branco.


o amor
é coisa de pele o amor
da pele de cada um
e é tão de pele o amor
que por causa da minha cor
não me sobrou nenhum

poesia sobre amar
tem em todo lugar
tá na ponta da caneta
mas cê nunca fala de gente preta
porque é mais fácil deixar pra lá

na escola o amor eu li e só
porque se seu cabelo tem nó
e não cresce lisinho até o cu,
se seu olho não é azul
se seus traços não são delicados
se o seu nariz cresce pros lados
e seu lábio parece dois
como é que faz depois
pra ser
amado?

você diz que amar cura
mas eu sei da minha amargura
agora sei de onde vim
se for amor, porém
não espero mais de ninguém
além de mim.

sábado, 28 de maio de 2016

Perímetro.




apressado
eu
passo
você
acha 
engraçado
diz que eu tenho rebolado
enche a boca e grita
— viado!
não caiu a sua ficha?
sempre que cê grita "bicha"
é como um chamado
eu paro, sem jeito,
a sua porta
sorrio, mando beijo
grito de volta:
— obrigado!

sábado, 14 de maio de 2016

parece erro dos dedos ao digitar
mas eu te ano
como nunca pensei anar
pouco tempo fez
e eu tanto te mês
que sentir já não me engana
eu te quinzena, te semana
você nunca imaginaria
o quanto eu te dia
e que a distância é um açoite
é ferimento de espada
eu te noite
te madrugada
nesse tempo diminuto
já te minuto
no girar do mundo
eu tanto te segundo
que em milésimos de centésimos
depois de períodos enésimos
tempo, espaço
te tique
te taque
te metro
te quilômetro
te relógio e te termômetro
em tempos de amor mudo
posso parecer louco
mas tanto te tudo
que qualquer tempo é muito
pouco

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Timóteo 5:5-6

Tive sede, mas não me movi. Queria evitar os espelhos no caminho até a cozinha.

Sentei-me à luz da janela, a qual havia deixado meio aberta para, de vez em quando, entreolhar o lado de fora. Tanto quanto o quarto, a rua estava vazia, o chão molhado, o céu nublando e desnublando de hora em hora, sem saber se chorava ou não chorava, se anoitecia ou se a luz do dia já era triste o bastante.

Flores por todos os lados. Coroas, arcos, jarros de pálidos crisântemos congestionavam a vista. Não estavam ali de enfeite, mas sim porque o cheiro floral disfarçava o da putrefação.

Esquecido sobre a cama, um corpo. A pele era de um escuro claro, as mãos morreram feito garras, os dentes amarelados como as pontas dos dedos, os cabelos crespos quebradiços espalhados pelo chão e pelo travesseiro, lábios enormes ressecados feito pedregulho. Tinha calos nas mãos e nos pés: nos pés porque vestira sapatos apertados demais durante toda a vida e nas mãos pelas cartas que escrevia incansavelmente. Nunca as enviava. Às vezes, amassava os manuscritos em bolas de papel e enfiava na boca, mastigava, engolia, as dobraduras iam pontudas arranhando a garganta por dentro, tossia do gosto amargo da tinta, nunca cuspia, chorava, arrependia-se. Algumas palavras não conseguia lembrar novamente depois — quando tentava reescrever tudo aquilo que fora goela abaixo. 

A porta do quarto era de madeira como um caixão, a da sala era madeira também, mas caixões podem ser de vidro e do material que quiser que seja, a única exigência é que nunca seja escolha do cadáver. As portas poderiam simbolizar os caminhos, as novidades, desejos profundos, as pernas abertas do mundo, a angústia de não pertencer a lugar nenhum que não se encontre da pele para dentro, chorar é jogar fora o que morreu nas entranhas.

Morrer, morrer, morrer. 

Um dia se abre os olhos e a vida é toda sobre a morte.

Funerais ocorrem o tempo todo. Ao ar livre, entre quatro paredes de cimento, de gesso, de tapume, enfeitadas ou não, sob um teto ou não, há o pranto, o silêncio, a incontrolável risada, de dia, de noite, em oração ou em silêncio, de mãos dadas ou afastadas pelo tempo, a mágoa sempre há, pode-se estar em multidão ou a dois. Há funerais sem cadáver algum.

Tenho cortado limões ao meio e espetado cravos neles. As moscas, no entanto, permanecem. O ruído é insuportável. A morte só é silenciosa para quem morre.

Olhei o lado de fora, a rua vazia, o cheiro forte, os olhos fechados, as mãos como garras, as lágrimas secas, as poças no chão, o forte zumbido, eu não quero morrer, soluço, o lápis sobre a mesa, o sol escondido, a noite nunca chega, eu não quero morrer.

Por favor, não me deixe aqui.


terça-feira, 26 de abril de 2016

você
saiu da minha vida
e nem voltou
pra dar tchau
ou pra tirar o sal
que cê deixou
em cima das feridas
que eu mesmo abri
depois que percebi
que você
não voltaria



segunda-feira, 18 de abril de 2016

Saudade.

só há resíduos seus
aos poucos acumulando nos cantos
crostas cinzentas sobre os azulejos

há sobre a pele grudenta de desencanto
algo mais que ácaros e as marcas de seus beijos




terça-feira, 22 de março de 2016

Amor ópio.

eu que nunca quis amar
e nunca tive amor
encontro-me em mesas de bar
ou revirando gavetas
acho-me a gastar canetas
cada gole do copo, da tinta
é a prova mais sucinta
que de tanto não amar ninguém
acabei sendo quem,
no fim,
rejeitava amor a mim.

sábado, 19 de março de 2016

Março.

tenho me sentido sozinho
em todos os lugares
das multidões
às confissões a dois
à total escuridão
da luz apagada
e do toque do travesseiro
na bochecha cansada
de sorrir de mentira
dos olhos exaustos
de quem só chora
trancado no quarto

segunda-feira, 7 de março de 2016

Vênus em Peixes.

hoje, no ônibus,
acho que me apaixonei bem depressa
só não sei se por você
ou pela vontade de saber
o que tanto cê olhava
pela janela.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Faixa de pedestre.

minha tristeza está nas ruas
numa marcha lenta, fria
machucada nas mãos nuas
de dor, berra alto
o rosto arrastado no asfalto
aguardando acabar o dia

meu luto está no olhar indiferente
na pressa de toda essa gente
que pisa, cospe, ignora
mas que por dentro chora
de um vazio que lateja
peleja
e não vai embora

meu pranto, às vezes, é atropelado
por andar a pé
os carros vermelho-sangue
voltam pra perto do mangue
sem saber o quão triste é
ser deixado de lado

minha lágrima quando sobe o morro
abre a boca pra pedir socorro
mas de tão vivida
cala
bebe um copo d'água
para acalmar a mágoa
de nunca ser ouvida

depois ela senta no chão
enxuga o rosto com a mão
ajeita bem o papelão
e dorme tão tranquila
quanto os pés que a pisoteiam

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Tubular Bells.

[...]

Virei a esquina e tudo parecia ainda mais escuro. Somente um poste luzia no meio da rua; sua luz, no entanto, oscilava.

Algumas calçadas mal iluminadas exibiam silhuetas que projetavam a imagem de algo que poderia ser desde escombros de uma construção acabada à uma pessoa abaixada, à espreita.

Respirei fundo.

Segurei mais forte as alças da mochila e caminhei a passos largos, mal levantando a cabeça para enxergar o que estava ou o que não estava no meu caminho.

Na casa de andar da rua, alguém esperava de pé na varanda. Sua cabeça parecia estar virada em minha direção.

Foi então que, sob o poste, encontrei aquilo que aterroriza os meus sonhos até agora.

[...]