quarta-feira, 29 de maio de 2013

Sonheto.

Hoje eu planto sonho
num quintal de solo morto
e cada semente que ponho
cada uma um sonho torto
deficiente,
nascido de um devaneio
pequeno, descrente
sequer sabe de onde veio...

E colherei qualquer amor
folhagem pequena que seja...

porém, para o meu pavor
mau espírito me corteja!

"Olá,  quero dizer
Apesar do pouco caso
Que não há o que fazer
já não sonhas ao acaso;

e neste solo rarefeito
num arremedo de quintal
achas que haverá jeito
de brotar um roseiral?

o fruto de tua loucura
isto sim é um mistério!...
não nascerá planta pura
sequer flor de cemitério

Mas escutas meu apelo
e há de ficar inquieto:
é de certo pesadelo
o tal sonho que era feto!

...Mas, ó, resiste à dor
respira fundo, não pereça...
Qual diabo de agricultor,
ao ver não brotar a flor,
baixa logo sua cabeça?!

Levanta! Tem coragem!
planta logo alguma vagem,
se não for, que seja rosa,
para pôr fim à maldita prosa."

E me ergui de olho cheio
e daquele solo tão feio
de fato, nada brotou
ah, espírito desgraçado!
ao se ver livre do fardo
logo, logo desertou

Eu sozinho, desgraçado
da terra fiquei cansado
Nunca mais plantei um sonho
Aquele fantasma risonho,
o meu medo encarnado,
não havia retornado
Eu, então, peguei no sono...

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Almadura.

 - Eu era blindada, senhor. Eu era blindada até conhecer você. Se não me falha a memória, por nenhuma vez presenciei maior palpitação no coração, não fosse por quaisquer rotineiras alegrias ou desesperos. E não se engane, você é desespero. Sequer sentia nada por alma nenhuma, exceto a minha própria, muito bem guardada no meu casulo de corpo. Senhor, você a invadiu. Você despiu a minha alma. Estuprou-a aos poucos, violentou-a, despedaçou-a. Eu não aguento os sentimentos!... Estes estilhaços de alma que furam as entranhas como os mais amolados punhais, errantes adagas, cravando-se fundo e enterrando-se cada vez mais e mais. Eu sangro! Eu sangro de dentro para fora, pelos poros, pelos olhos. Meus cortes não são visíveis a olho nu... Não! Mas se chega perto e me olha atento, percebe as feridas, enormes feridas, atravessando a pele dos pulsos? Não há como ser despropositada, senhor, a sua brutalidade! Não há como não haver maldade hospedada em seu âmago. É mau! Nego ser normal o olhar que me inflama de dentro pra fora em um segundo, ou congela a boca do estômago quando passa sem cruzar o meu. Maldito tiro de seu lábio algoz que atravessara o fino véu de minha morada e semeara em flor esta coisa que crepita, crepita, crepita... Consegue escutar estalando? Se é isso que chamam de paixão, ora! Dê-me uma azia e esconda os remédios... Ponha em chamas meus intestinos... Isto é dor e nada mais! E se pensa em ficar, senhor, se engana. Se fica, eu vou. Se fica, prometo minar-lhe com unhas as pupilas, prometo arrancar-lhe com dentes a mandíbula... Para que, por um minuto que seja, sinta o ardor que me faz sentir. Não te ponho em adoração, não, te entrego ao Diabo! Achei que fosse bom gostar do pecado... E se pensa em ficar, senhor, equivoca-se. Se pensa em ficar, replico ofegante que vá! Digo-lhe, ainda, que não ouse querer partir. Que doa a ambos a sua ida, que mate os dois a sua partida. Eu era blindada, senhor, além de tudo... Que caia também o seu escudo.