sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Destinatário.

"Caro Neil,
Venho pedir-lhe novamente que abandone a minha vida. Peço-lhe sem balbúrdia e educadamente já que, ambos sabemos, não há mais possibilidade de habitarmos o mesmo lugar. Não podes mais ignorar a minha existência!
Estou farto de suas badernas e bebedeiras que só me fazem mal, de seu cheiro de nicotina e de álcool; de limpar os teus lençóis sujos nas manhãs e de pagar as cortesãs que trazes para casa. Não posso mais aguentar! E, como foges de mim, não havia outro jeito de comunicar-lhe as minhas insatisfações.
E que parta daqui com as tuas roupas fétidas, com o teu cheiro, tuas garrafas, tuas cortesãs, tua arrogância, tua voz, tua presença... Some! Deixa-me em paz, imploro!
E se negas deixar o meu lar, que deixe de covardia e que conversemos de homem para homem.
Na saída, seja cavalheiro: Deixe tudo do modo como encontrou.

Cordialmente,
Sebastian."

Neil amassou o papel e sorriu, desdenhoso. Bocejou e espreguiçou-se, tentando não se importar com a dor de cabeça lancinante que parecia querer explodir o seu crânio de dentro para fora. O que aquele homem queria novamente?

O errante Neil, entregue à bebida e às mulheres, dono de um ar preguiçoso, postura errônea, olhar sonolento, passos lerdos e um senso de nada.

O elegante Sebastian, dono dos bonitos trejeitos, fala bonita, roupas bem alinhadas e a irritante mania de arrumação.

Não tinham nada em comum. Nem a postura, nem a fala, nem os trajes, nem a personalidade. Não, não tinham nada em comum. A não ser pelo fato de habitarem o mesmo corpo, eram completamente diferentes.

E ainda naquela noite, tiveram uma séria conversa. Em frente ao espelho.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Estrofe e estupidez.



Pois, a vida é muito curta
Para se perder cobrindo pegadas
Fique atento, não se iluda
Olhos de vidro furam as pálpebras.


segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Em Sônia.

Ah, Sônia
Já não posso domir
Com tanto espaço nesta cama
Volta, diz que me ama

Ó, Sônia
Onde está você?
Vem curar as minhas olheiras
E os meus choros de noites inteiras

Ou, Sônia,
Sai da minha cabeça
Da minha cabeceira
Antes que a pálpebra apodreça

E se não é tua a canção de ninar
Prefiro estar acordado
Pois, de nada adianta descansar
Se não te tenho ao meu lado

Pois, Sônia
Se contigo não posso estar
Com quem haverei de sonhar?

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Eu não amo você.

Eu não amo você. Não. Nem os seus cabelos esplêndidos que esvoaçam ao vento e deslumbram à vista, pendurados como moldura em volta de seu fino rosto de pintura. Eu não amo você, não. Nem o seu sorriso branco que estampa a paisagem como o mais lindo e brilhante dos sóis e me queima a pele, os olhos, as entranhas e todo o ser. Não! Eu não amo você. Nem a sua doce voz que ultrapassa as barreiras dos tímpanos e dispara o coração como o mais incansável pandeiro, batucando uma canção desarmoniosa que dói na ponta dos dedos. E para quê haveria eu de te amar? Para perder-me para sempre em tua pele macia, em teus montes, planaltos e planícies que roçam o meu relevo sem piedade, e me arrepiam a grama da nuca sem rodeios e num só olhar. Não amo também o teu olhar! Aquele que traz a malícia, uns pingos de lágrima disfarçados num manto de grandes cílios e todos os outros sentimentos escondidos atrás da cortina de íris castanho-avermelhada. E bate forte o peito, e a mente grita o teu nome, e os olhos te procuram, e a pele sente a tua falta... Ah! Eu não posso amar você.

domingo, 18 de setembro de 2011

Carta ao Amor.

Caro amigo (ou seja lá o que você for),

Envio esta carta para te pedir que desocupe a parte que sobrou do que costumava ser o meu coração. Há coisas demais aí! Não há mais espaço para ti, nem para mais nada. E nem ninguém. Não, mais ninguém.

Peço também que avise aos teus companheiros de quarto (a Saudade, a Angústia, a Ansiedade e os demais agregados) para também se retirarem, pois, estes chegaram sem avisar ou sequer tocar a campainha e as dívidas não podem ser quitadas apenas com sofrimento.

E que se retirem rapidamente, nada de esperar o Tempo, pois este é um tratante! Demora a chegar e apesar do seu bom trabalho, não vale a pena deixar o recinto em cacos esperando a sua chegada. Eu mesmo o reconstruirei!

Por fim, peço que não façam alarde e que não danifiquem mais nada por aí. Pretendo vender o recinto o mais rápido possível, para quem quer que queira, se é que há. E se não o quiserem mais, quem sabe não o abandono? Só não quero alugá-lo a mais ninguém! Não, nem pensar.

E que me retorne com qualquer resposta que não sejam lágrimas.

Encarecidamente,
Luiz Amado.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O poema vermelho.

A poetisa rastejou, manchando o chão de poesia, de essência, de sangue. De dentes cerrados, de olhos fechados, de braços abertos. A lancinante dor percorria-lhe todo o corpo e ia esvair-se pouco abaixo da palma de sua mão. Nada de dor física, não, nada dessa dor superficial: Era dor na alma; a dor dos poetas.

E gritava os seus versos com precisão, as rimas fluíam de seu próprio corpo em tinta vermelha e iam espalhar-se no assoalho dando vida ao que era inegavelmente a maior das artes. O sofrimento expresso de modo concreto, os versos cor-de-carmim manchados com brutalidade no papel onde antes pisavam.

E tudo era sentimento: Das lágrimas secas ao redor de suas pálpebras à ira de seus pulsos arrastados contra o chão. Tudo era seu, tudo era arte. Tudo era apenas um poema, mas o maior deles. E no centro da grandiosa obra tinha a si mesma; em seu rosto, nada de sorrisos, nada de fingimento. Lá estava estampada a face que sempre possuiu por dentro: Aquela manchada de lágrimas e de sangue, mas de boca aberta, entalando um grito.

sábado, 23 de julho de 2011

Visita.

E adentrava a vizinhança, munido de um buquê de flores mortas e um conjunto de dentes tortos à mostra, além dos brilhantes olhos que agora mal lhe cabiam na face. E rondava entre os lares, os pilares, buscando aquele que era a morada de sua amada. Aquela que amava já de modo incondicional, a da pálida pele, dos curtos cabelos, a dos oleosos - e sempre vazios - olhos. E apesar de não portar nenhum grande sorriso ou braços abertos, ela sempre estava lá para recebê-lo de bom grado.

E lá estava ele batendo à sua porta de madeira apodrecida sob a luz da linda lua que subia aos céus, quase tão majestosa quanto a mulher que ali jazia. Sua por toda a madrugada.

Dali a pouco já estavam despidos e de corpo um no outro, num atrito gelado, embalados pelos urros que ele desferia aos quatro ventos, repetindo que a amava para que apenas as estrelas testemunhassem.

Por fim, se sentava, chorava um pouco, acendia um cigarro. Vislumbrava-a em seu frágil ser de porcelana, sem retribuição, enquanto a garota visava apenas o escuro véu de céu pendurado sobre as suas cabeças.

Então, quando o sol ameaçava pender sobre a linha do horizonte, vestia as roupas de sua amada com o mesmo cuidado criminoso - e apaixonado - que usou para despi-la. Daí volta a abraçá-la e beijá-la para só então devolvê-la ao seu túmulo e ir embora, carregando a mais suja e incontrolável das paixões em suas pesadas costas.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Maria Louca.

E lá estava a Maria Louca, como era chamada, sua doença não era pouca e numa cadeira estava entrevada. Cega, caduca e ah, tão maluca!

Tagarelava, tricotava, trepidava, tiquetaqueava, tornava e retornava. E o cuco, antigo amigo, carcumido em seu abrigo: Tão velho quanto ela, a velha.

- Tic, tac. - dizia o relógio.

- És tão engraçada! - respondeu a velha torta, virada para a porta - Há tempos ando sozinha, amiga galinha, sem ninguém para matar esta tristeza minha!

- Tic, tac. - respondia o passarinho, entrando e saindo do ninho.

- Não fosse tu, amigo urubu, estaria entregue, não negue. - e ia tricotando, marotando e desgastando.

- Tic, tac.

- Ora, esta já não tem mais graça! Outra piada, amiga garça, antes que eu fique cansada!

- Tic, tac.

- Arre! Mas que chata essa ave! - exclamou e não mais tricotou, a cara fechou e os punhos cerrou, se calou.

- Toc, toc.

- Cala-te!

- Toc, toc.

Que surpresa aquele ruído! Era na porta que haviam batido.

Foi o azar, a velha gritar:

- Pode entrar!

Mas qual foi a grande sorte: Quem batia era a própria morte.

sábado, 11 de junho de 2011

Deve ter sido um sonho.

Olá, leitores!
Eu estava aqui remexendo os meus arquivos e achei um texto. É de 2009.
Achei tão cômico e bobo que acabei postando aqui no blog. Aproveitando o Dia dos Namorados e tal (desgraçado!). Bem, eu espero que gostem.

Acordou.
- Onde está o Michael, mãe?
- Michael?
- É. O Michael. O meu namorado.
- Querida, você não tem namorado.
- Como não?
- Você tem?
- Claro que tenho! O Michael! Nós dormimos juntos e...
- Você dormiu sozinha.
- Dormi?
- Dormiu.
- Mas...
- Deve ter sido um sonho, querida.
- É, deve ter sido.
Naquele momento, ela acordou pela segunda vez. Dessa vez, de verdade. Há dias em que você acorda e percebe que, simplesmente, sempre esteve sozinho.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Cães.

Aquilo se tornara o nosso vício. Os urros, arranhões, beijos, a culpa, a dor. E o cheiro de sangue, o meu sangue, sempre preenchendo o ar. Me percorria com o ardor de um cão, como o animal que era. Arfava aos meus ouvidos, pingava de suor.

De luzes apagadas nada estava errado. Primeiro, a dor e as lágrimas. Depois, a culpa. Oras, não nos amávamos? O que há de errado em agir como amantes que éramos? Como os animais que éramos.

E ia, me preenchia, sem culpa, até que o meu sangue escorresse por sua barriga, até que eu implorasse pra parar. E levantava da cama, andava em círculos, não acendia as luzes. Não queria ver, nem lembrar. E me encontrar aos prantos era a maior prova do crime, do pecado. Como se não pudesse ouvir os soluços esganiçados que eu proferia através do escuro.

E cessavam-se os soluços, as lágrimas, ia-se o cheiro. Estávamos os dois sentados em lençóis sujos, no escuro. Silenciosamente.

Era sempre ele a quebrar o gelo, sua voz vinha sempre baixa, sibilante, pesada. Um cão rouco.


- Já está tarde. - sussurrava, no escuro, tateando em busca de uma das minhas mãos trêmulas. - Hora de ir, irmãzinha.

domingo, 3 de abril de 2011

Órbita.

Alucinados, os garotos. Os olhos fora de órbita, as cabeças fora do lugar. E só assim o mundo realmente gira. E gira. Gira até ficarem tontos, até colocarem tudo pra fora. E se arrastarem sobre o vômito, o suor, o sangue, os fluidos.
E riam, e caiam e não se recompunham. Nunca se recompunham. Só se despedaçavam, se dispersavam na fumaça e se encontravam no mesmo lugar. E ali no chão, sem tontura, com o mundo parado, os olhos parados... Eles eram os mesmos. Sem máscaras. E parecia ironia, mas de pé e sem cambalear tudo era mais difícil. E, de repente, o mundo já não girava mais e estava tudo lá. Toda a sujeira.
- Tem mais disso aí?
- É claro. Mas vamos ter de reutilizar as seringas.
E o mundo se mantinha girando, girando. Movido à droga. Longe de toda a lucidez, que é loucura. A loucura da vida.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Queda.

Sem saber o certo motivo, lá estava ele à beira da janela, fitando a pequena multidão que ia se acumulando lá embaixo.
Quando havia perdido todo o controle de si?
Buscou-a no meio de todos, em desespero, mas já crendo em sua ausência. Ela não estava lá.
Por que era tão difícil não ver o rosto dela no meio daqueles tantos outros?
Respirou fundo, abriu os braços. As pernas pendiam, o coração ia aos saltos.
E nem mesmo a atenção daquela a quem tanto era atento conseguira.
E então, era a queda livre. Em sua mente não passava aquele turbilhão de coisas que dizem que passa. Apenas ela cabia ali, em sua pequena cabeça.
E, antes de chegar ao chão, avistou o pequeno cartaz com aquelas palavras que causaram-lhe a sua última dor.
"Eu te amo".

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Umas linhas de amor impossível.

Lado a lado, olhos nos olhos, sorrisos, corações batendo descompassadamente. Até o céu parecia a favor deles, as estrelas, a lua, o mundo. Pois, que mundo? Se não existia mais nada ao redor deles além de si mesmos, um ao outro, os olhos do outro, as mãos do outro, a voz do outro.
E por fim nem o sentimento entendiam mais, jamais, não é coisa de se entender. Sentimento sem nome esse que não feria, não derramava lágrimas, sangue, não explodia o peito e nem doía a cabeça.
Satisfeitos, sim, apenas com a presença do outro. Apenas a existência do outro. A respiração. A sintonia. Dividiam os olhos, os olhares, as visões, fluidos, espasmos, se dividiam. Não eram mais donos de si, não eram donos de nada.
E apenas isso bastava, nada mais. Nem o resto do mundo. Aliás, que mundo?

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Cigarros.

Ambos portavam os seus cigarros acesos. Os olhos acesos.
Tragavam sem desviar o olhar um do outro, esperando que alguém se pronunciasse ou, ao menos, que os cigarros acabassem.
Estavam tão desgastados quanto os seus pulmões, tão dispersos quanto a fumaceira.
Os olhares eram fixos um no outro, mas a mente já divagava por outro lugar, por outros olhos.
De repente, parecia que haviam quilômetros separando uma poltrona da outra.
- Precisamos acabar com isso. - começou ele, despedaçando o que sobrara do cigarro no cinzeiro enferrujado.
E a paixão desenfreada de antes, que era como fogo aceso, ia sumindo, queimando, virando cinzas. Não passava de uma bituca.
- Tudo bem. - ela respondeu com uma impressionante calma - Mas os cigarros ficam comigo.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Conversa entre orações.

A beata ainda se pergunta se ele já estava lá quando ela chegou ou se sentara ao seu lado depois. O que sabe é que durante o quarto ou quinto Pai-Nosso, dirigiu-lhe a palavra:
- Ei, psiu, moça! Moça! Por que rezas?
Voltou-se pra ele, estranhando seus trajes escuros e o capuz que lhe cobria o rosto. E num súbito de incredulidade, voltou-se de olhos novamente no altar, crendo na inexistência duma pergunta direcionada a si.
- Falo contigo, moça. - continuou o homem, de modo a dificultar ser ignorado dessa vez - Por que rezas?
A mulher cria ser vítima duma brincadeira ou jogo, então não deu rodeios:
- Rezo para Deus, para me manter em seu caminho. Para me manter de pé.
Uma pausa silenciosa sob o capuz. Talvez um riso.
- E por que acreditas em Deus?
Fosse o que fosse, a brincadeira começava a incomodá-la.
- Ora, não há motivo para acreditá-lo. É a minha fé.
- Você nunca viu Deus.
- E é por isso que é fé.
- Você não tem provas de que ele existe.
- Mas acredito.
- Você deve estar precisando de algo. O que é?
- Apenas estou fazendo a minha oração...
- Dinheiro? Uma casa? Um carro?
- Não estou...
- Um homem, talvez?
- Só estou orando!
- Orações também não são baseadas em pedidos? Não é tudo vaidade?
- O que queres?!
- E a vaidade não é um pecado?
Ela não queria escutar mais e voltou-se em sua oração, tentou concentrar-se, remexeu-se. Estava inquieta. Que queria aquele sujeito?
E, sussurrada ao pé do ouvido dela, veio a pergunta que a fez arrepiar-se por inteiro.
- E no Diabo, acreditas?
Assustou-se. Respirou fundo. Deixou-se abalar. Estava ainda mais inquieta, temerosa. Já fora tudo longe demais.
- O que queres de mim?
- O que queres de Deus?
- Deixa-me em paz!
- Falta-lhe dinheiro?
- Vai-te!
- Falta-lhe paz? Ou falta-lhe amor?
Ela ficou em silêncio. Fosse por não ter mais respostas, fosse por estar cansada ou por medo.
- Eu sabia. - murmurou o sujeito, recostando-se no banco, rindo alto - Todos vocês são iguais. Todos iguais.
A mulher fixou-se em sua oração, de olhos fechados, coração aos saltos. E, ao reabrir os olhos, encontrou-se a sós.
Quão silencioso era aquele homem pra retirar-se sem ser notado?
Sabe-se-lá porquê, mas a beata nunca voltara a pôr os pés naquela igreja. Como pretexto, diz ter conversado com o próprio Diabo ali.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Picadeiro.

- Ora, vamos, o público já está esperando há tempo. - disse o Palhaço, com um aceno impaciente de mãos.
- Uma dama precisa de mais do que isso para estar pronta. - rebateu a outra, resistindo à pressão.
- Ha! - como um bom palhaço, ele zombou - Minha cara, cá pra nós, damas não têm pêlos na cara!
- Mas que ousadia!
- Vamos parar com essa briga, senhores. - interrompeu o Mágico, adentrando a pequena tenda de ceroulas e cartola na mão - Deixe que a dama se vista como quer, Palhaço. O público pode esperar mais um instante.
- Você ainda está de ceroulas? - já perdera a paciência há muito tempo, o Palhaço - Mas será possível...
- O que estamos esperando? - o intrometido malabarista já tinha a cabeça atravessada na abertura do recinto - Ah, claro, sempre a Mulher Barbada...
- Ignorantes! - esbravejou a mulher, que era a mais máscula entre todos os presentes - Tenho muito o que aprontar! Maquiagem, figurino, cabelo...
- O da cabeça ou o do queixo? - e lá vinha o anão, saindo de baixo de uma pilha de tralhas jogadas ao canto por algum outro circense descuidado.
- Mas ora...
- Cale-se você também, anão. - mas que mandão era o Palhaço! - E trate de preparar o picadeiro, antes que te esmague de um pisão!
- Mas para quê preparar o picadeiro agora? Se ainda nem as tranças na barba a mulher aprontou! - o mágico já não estava mais só de roupas de baixo, afinal. - E onde será que eu deixei a minha cartola?
- Epa! - foi o que escapou do malabarista enquanto caía sobre o anão.
- Mas será possível!?
- Agora só falta o vestido! - levantou-se a Barbada, dirigindo-se ao empoeirado guarda-roupa e a arrancando dele um imenso vestido que, pelo tamanho, notava-se que só dela poderia ser.
- Ótimo, ótimo. - resmungou o Palhaço, que já sentado estava -Anão, o que ainda faz aqui? Vai preparar o picadeiro como te mandei!
- Mas o que tenho que preparar naquela jossa? - apesar de pequeno, o homenzinho tinha lá a sua valentia - Não é só entrar lá e fazer toda aquela gente rir?
- Deixa o anão em paz, homem! - o mágico se pronunciou - A propósito, alguém aí viu a minha cartola?
- Ajuda-me com o vestido, Malabarista! - apesar de grande, o vestido não coubera em toda a grandiosidade daquela mulher, se é que compreendem.
- Lá vem a rolha-de-poço... - murmurou ele, segurando a parte de trás dos trapos da outra.
- Como é que é?
- Mas é verdade! - se intrometeu o Palhaço, de zombaria. - Precisa fazer um regime ou nem a lona vai entrar em você, mulher!
- Ignorantes!
- Onde será que coloquei essa cartola?
- Estão escutando? Eles já estão gritando!
- Anão, vá fazer o que mandei!
- Mas não há o que fazer...
- Como vou fazer o meu número sem a cartola?
- Ih, madame, o vestido não vai entrar...
- Mais rápido, mulher! O público já está em borbulhos!
- Como não vai entrar? Usei esse vestido há pouco tempo.
- Mas engordou em pouco tempo, também.
- Palhaço, para de escândalo e me ajuda a procurar a minha cartola.
- Você está me chamando de gorda?
- O público vai acabar derrubando o circo desse jeito...
- Alguém pode me ajudar a procurar a minha cartola?
E assim fez-se a confusão.