terça-feira, 17 de novembro de 2015

Mãe.

seus olhos sinceros
cheios d'água
a fala arrastada
um tom de mágoa
a vida toda passou chorada
derramada

lá dentro da carne, de verdade
uma centelha de liberdade
cava desvairada feito fera
e o mundo a espera.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

A dolorosa.

Os cadarços, um par;
Os sapatos, direito e esquerdo
Duas meias sujas de tanto andar
rápido de desespero

Logo depois foi a blusa vermelha
Antes da saia e do cinto listrado
Que escondiam a centelha
Que ele tanto tinha cobiçado

Sutiã arrancado fora
Calcinha tirada no dente
se mais um pouco lá demora
estaria certamente
suja
de sangue quente

Maria onze vezes berrou
cada grito era uma peça de roupa feminina
O vilarejo nem mesmo acordou
Ninguém presta
atenção
à rotina

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Ferimento.

Eu tenho a dor de amar os que sentem
na boca do estômago arder
o ácido cotidiano
Tenho o desgosto de repudiar os que mentem
os que forçam-se a meter
a agonia goela abaixo, de ano em ano
Engana-se o que diz
"viver é bom demais, é indolor"
Engana-se o que é feliz
"não há como não querer viver num mundo tão cheio de cor"

Roubaram o colorido
O bonito
Agora é feio
Balizado, escondido
No fundo fedido
De um bloco malfeito
Erguido no seio
E com tanto asseio
No meio
Da gente

Eu só amo quem sente
O asfalto quente
Diariamente
Luta tanto e ainda mente:
"Vai ser melhor daqui pra frente"

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

De composição.

Não se esqueça,
Morte e vida
são convenções:
é frequente
tanto morrer cheio de vida 
quanto viver dentro de um túmulo 

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Onde eu moro.

Eu tentei sair de mim. Tentei as portas e até as janelas, martelei as paredes. Berrei, aos prantos:
"Alguém me tire daqui", alguém gritou de volta de novo e de novo, cada vez mais baixo, até sumir.
Escavei os chãos, pulei muros, chorei. Chorei porque percebi que, para sempre, eu estaria condenado aos meus erros e somente aos meus.
"Eu nunca vou saber como é ser outra coisa".
E se eu desacascasse a pele e o que tem embaixo, se eu me abrisse camada por camada pro avesso respirar?; poderia enfiar os dedos das mãos através da pele cortada, agarrá-la pelas bordas, dobrá-la ao contrário. Não adiantaria.
"Essa aí nasceu do avesso", meu pai dizia, "essa aí é ao contrário". Nasci do avesso, ao contrário. Virada pra dentro de mim mesma, de olhos fixos na escuridão do tempo que passa. Ouvindo o coração bater, bater, bater...
Ah, eu tentei sair de mim. Mas tudo em mim tem cancela, fechadura e chave nenhuma. Tudo em mim clama por me manter afogada, espalhada pelos cantos, escorrida dos olhos.
"Tudo o que morre dentro da gente vira lágrima", eu dizia, quando chorava do lado de fora.

Eu tentei sair de mim. Eu tentei!
Mas eu já nasci morta.
"Essa aí nasceu torta."
Que rima mais infeliz.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

os teus olhos
ao mancharem os meus
abrem sorriso
do siso ao siso
— é amor, meu Deus!
só pode ser amor.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Sobre o amor que ninguém vê.

Para alguns de nós
amar é sempre triste
é uma espera incessante
por algo que sequer existe

É um abraço contido demais,
um constante desencontro
É um beijo que, sem avais,
se transforma em batida no ombro

É tudo o que fica escondido
atrás de olhos marejados,
um aceno constrangido,
do coração aos saltos

É tudo ao mesmo tempo

Morte, vida,
Conformação e desespero
É chegada e despedida
É insosso e é tempero

É um ruído silencioso
uma agonia quieta na mente
O antídoto mais venenoso
Pro abandono de toda essa gente

Amor é aquilo, não é isto
Crucifica, salva, aponta o réu
O amor é Jesus Cristo
E quando ele descer do céu
É profano mais que divino
É pouco Eike, mais Severino
É mais Slova que Cuervo
Mas vodka deixa um gosto ruim na boca
De qualquer jeito

É mais espingarda que 38
É ter dezoito
Ser preto
E não ser preso
Ao andar na rua

É chuva que não inunda as ruas de Aracaju
É deputado tomando no olho do cu
Dinheiro rasgado, abraço apertado,
É um monte de prédio derrubado
Pra não tapar o pôr-do-sol
Na orla de Atalaia
No Sábado
E nesse dia ninguém morreu
arremessado
De viaduto nenhum

São fogos de artifício
Na favela
É olhar no fundo do olho dela
E sentir um rebuliço
De beijar
E não machucar

É andar pela rua
e achar sem nexo
Tanta gente se amando
E ninguém do mesmo sexo?

Amar, de fato,
É não achar o amor errado
Seja ele pochete,
Seja ele mala,
Seja um pau sob uma saia,
Mesmo que não saia na manchete
Daquele famoso jornal
Que na capa dessa semana
Defende a redução
da maioridade penal

Amor é não ter um teto
e ainda assim sorrir de afeto
quando nasceu o bebê da Maria
Mas o amor também tá na dor
de Sofia,
a puta que não pariu,
porque não tinha um tostão
ou porque o marido João
interviu
Por não ligar pra afeto
ou pro feto
agora morto
depois do aborto
que Sofia não queria
Mas que morreria
Se não tivesse feito
Então não teve outro jeito



O amor é triste
Sequer existe.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Sala de aula.

Ser alguém
É viver enjaulado
e ainda assim dividir espaço
com toda essa gente 
que vive todo o tempo sentada
E tem toda a vida
redigida
Em papel-moeda
Em fichários lotados 
de rabiscos importados
da cabeça de outra pessoa
E por mais que doa,
essa gente eloquente
não é nada inteligente:
Sou o pior dos bandidos
Por não viver uma vida chata
Toda roteirizada
Em post-its coloridos.

domingo, 5 de julho de 2015

Sobre desimportância.

Dos olhos castanhos
ou lábios macios
uns completos estranhos
gritando por beijos
Loucos, teus olhares fugidios
Ainda que te peça de volta
São traiçoeiros os teus desejos

Nesta carta,
deixei coladas as páginas
para não virá-las
No verso, agradeço brevemente
os teus olhos indiferentes
que mesmo que não se façam entender
atravessam-se
dilaceram
e inquietam
a minha mente


quarta-feira, 1 de julho de 2015

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Laboratório de anatomia.

tanta maxila, mandíbula, siso
e nenhum sorriso

uretra, próstata, utrículo
clitóris, os lábios, vestíbulo
como pode tanto pau, buceta e cu
empilhados um a um
e não ter gozo nenhum?

pilhas de bíceps, tríceps
dorso, ombro e antebraço
imóveis, os músculos
distantes, os abraços

átrio, ventrículo
valvas, trabéculas, nós
aorta desobstruída
e tão pouco amor na vida

nossos corpos
condenados 
ao odor tão fétido
do formol

e da formalidade.



segunda-feira, 15 de junho de 2015

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Poesia fosca.

está soterrado todo
todo o amor na cidade!
sob prédios de concreto
e um céu estrelado
ofuscado
por dez mil luminosas janelas
por um refletor
por sete TVs ligadas
pelo farol, ponto turístico
pelas chamas na periferia
pela sirene em seguida
e pelo vermelho respingado no asfalto
mil e um brincos de ouro
e nenhum brilho nos seus olhos

sábado, 18 de abril de 2015

sexta-feira, 17 de abril de 2015

vinte anos a menos pra ser amado
vinte vezes mais encolhido no canto
vinte coisas a menos pra ter me tornado
vinte anos, pouco tempo, e já perdi tanto.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Toque de recolher.

construímos monumentos sobre a paisagem
erguemos muralhas, criamos o lado de dentro
espessam-se os muros e põe-se blindagem
em todas as portas, um olho no centro

cerca elétrica, arame farpado
escurece e "corre, menino, já tá na hora"
a ironia do medo do enjaulado
é temer o lado de fora

acuados num canto
açoitados nas costas nuas
acuados, nos perguntamos tanto
quem nos tirou as ruas.




terça-feira, 31 de março de 2015

Amperes.

te olho nos olhos,
desenrolo a língua
para encurtar o percurso
pelas curvas do teu corpo
os vales, montanhas, as pontes
o monte de montes
demoro-me nas cachoeiras 
do teu riso

de joelhos,
engulo tuas lágrimas cor-de-pérola

quarta-feira, 25 de março de 2015

Gravata.


o amor é como um tecido bem amarrado
na altura da jugular:
se não te mata asfixiado,
ao menos a roupa deve enfeitar.

sexta-feira, 20 de março de 2015

Dicotomia.

quero escrever morte
e vida,
silêncio, sentença
chegada e despedida,
azar e sorte
amor, indiferença
pudor e safadeza
nudez e vestimenta
doçura, aspereza
a bondosa, a mesquinha
e tudo o que a gente separa
pela mais tênue das linhas.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Ditador.

Fiz das tripas cor,
ação
Pra que não chores sobre a lei
que tem te amarrado
A imprensa é inimiga da subversão,
você já ouviu o ditado?

Se o cavalo é fardado,
melhor proteger os dentes
Spray de pimenta em olho por olho
É quente, não é quente?

Em casa de empreiteiro,
a opressão é social
Devagar se vai ao longe, fio?
A bonança é um prato que se come...
...vazio

Não tire o seu cavalo da luta
Quem é bom já nasce puta
O que não mata, fortalece;
Quem é rico sempre enriquece, mané
E quem avisa amigo é

domingo, 11 de janeiro de 2015

Banquete.

Não esqueça do meu rosto
exposto
do meu crânio disposto
numa bandeja de mal gosto
e a minha face de desgosto
Não me meta a contragosto
na ciranda do tudo-imposto
Parta de outro pressuposto:
Eu nunca gostei do sexo oposto.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Saliva. Fogo. Expressão de raiva. Mais saliva. Muxoxo. Fogo. Fumaça. Cheiro forte. Comemoração. Troca de olhares. Fumaça. Toque de dedos. Tosse. Fumaça. Troca de olhares. Tosse. Olhar baixo. Toque de dedos. Saliva. Lábios queimados. Gargalhada.

Torpor.

 "Acho que apagou de novo."