quarta-feira, 22 de maio de 2013

Almadura.

 - Eu era blindada, senhor. Eu era blindada até conhecer você. Se não me falha a memória, por nenhuma vez presenciei maior palpitação no coração, não fosse por quaisquer rotineiras alegrias ou desesperos. E não se engane, você é desespero. Sequer sentia nada por alma nenhuma, exceto a minha própria, muito bem guardada no meu casulo de corpo. Senhor, você a invadiu. Você despiu a minha alma. Estuprou-a aos poucos, violentou-a, despedaçou-a. Eu não aguento os sentimentos!... Estes estilhaços de alma que furam as entranhas como os mais amolados punhais, errantes adagas, cravando-se fundo e enterrando-se cada vez mais e mais. Eu sangro! Eu sangro de dentro para fora, pelos poros, pelos olhos. Meus cortes não são visíveis a olho nu... Não! Mas se chega perto e me olha atento, percebe as feridas, enormes feridas, atravessando a pele dos pulsos? Não há como ser despropositada, senhor, a sua brutalidade! Não há como não haver maldade hospedada em seu âmago. É mau! Nego ser normal o olhar que me inflama de dentro pra fora em um segundo, ou congela a boca do estômago quando passa sem cruzar o meu. Maldito tiro de seu lábio algoz que atravessara o fino véu de minha morada e semeara em flor esta coisa que crepita, crepita, crepita... Consegue escutar estalando? Se é isso que chamam de paixão, ora! Dê-me uma azia e esconda os remédios... Ponha em chamas meus intestinos... Isto é dor e nada mais! E se pensa em ficar, senhor, se engana. Se fica, eu vou. Se fica, prometo minar-lhe com unhas as pupilas, prometo arrancar-lhe com dentes a mandíbula... Para que, por um minuto que seja, sinta o ardor que me faz sentir. Não te ponho em adoração, não, te entrego ao Diabo! Achei que fosse bom gostar do pecado... E se pensa em ficar, senhor, equivoca-se. Se pensa em ficar, replico ofegante que vá! Digo-lhe, ainda, que não ouse querer partir. Que doa a ambos a sua ida, que mate os dois a sua partida. Eu era blindada, senhor, além de tudo... Que caia também o seu escudo.

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