sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Parapeitos.

Parou ali, junto à sombra da cidade. Implorara aos céus por tanto tempo que fosse salvo daquela torrente de cabeças iguais toda composta de rostos iguais e que seguia incansavelmente no mesmo sentido para, no fim, alcançar o mesmo nada. Estava ali para salvar-se.

Parou ali, à sombra da cidade. E a sua própria sombra misturava-se aos traseuntes que, numa corrida contra o tempo, mantinham-se de cabeça erguida e olhos sempre à frente.

Parou ali, projetando a sua sombra sobre a cidade. Sobre uma faixa de pedestres que, ao contrário do senso comum, por si só, nunca salvou vida alguma. Ao contrário dos parapeitos, ah!, estes sim salvam vidas!

Parou ali, delineando a sua silhueta no horizonte da cidade. Os rápidos passos arrastavam-se numa cachoeira que desembocava horizontalmente para leste, para norte, para todos os lados. E, como uma cachoeira, não havia razão para desembocar; mas desembocava com todas as forças que possuía, apesar do caminho estreito.

Parou ali, acima das cabeças da cidade. Porque eram como gado, como cães adestrados, correndo atrás do senso comum: Pastando, correndo e fingindo de mortos; Matando, morrendo e fingindo de mortos.

Parou ali, à sombra da cidade. Sobre o parapeito. Sob o céu cinza. Então, sob o parapeito. Sobre a calçada. Escorrendo no asfalto, pelas vísceras da cidade.

E, de repente, era ele a maior prova de que parapeitos salvam vidas.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Destinatário.

"Caro Neil,
Venho pedir-lhe novamente que abandone a minha vida. Peço-lhe sem balbúrdia e educadamente já que, ambos sabemos, não há mais possibilidade de habitarmos o mesmo lugar. Não podes mais ignorar a minha existência!
Estou farto de suas badernas e bebedeiras que só me fazem mal, de seu cheiro de nicotina e de álcool; de limpar os teus lençóis sujos nas manhãs e de pagar as cortesãs que trazes para casa. Não posso mais aguentar! E, como foges de mim, não havia outro jeito de comunicar-lhe as minhas insatisfações.
E que parta daqui com as tuas roupas fétidas, com o teu cheiro, tuas garrafas, tuas cortesãs, tua arrogância, tua voz, tua presença... Some! Deixa-me em paz, imploro!
E se negas deixar o meu lar, que deixe de covardia e que conversemos de homem para homem.
Na saída, seja cavalheiro: Deixe tudo do modo como encontrou.

Cordialmente,
Sebastian."

Neil amassou o papel e sorriu, desdenhoso. Bocejou e espreguiçou-se, tentando não se importar com a dor de cabeça lancinante que parecia querer explodir o seu crânio de dentro para fora. O que aquele homem queria novamente?

O errante Neil, entregue à bebida e às mulheres, dono de um ar preguiçoso, postura errônea, olhar sonolento, passos lerdos e um senso de nada.

O elegante Sebastian, dono dos bonitos trejeitos, fala bonita, roupas bem alinhadas e a irritante mania de arrumação.

Não tinham nada em comum. Nem a postura, nem a fala, nem os trajes, nem a personalidade. Não, não tinham nada em comum. A não ser pelo fato de habitarem o mesmo corpo, eram completamente diferentes.

E ainda naquela noite, tiveram uma séria conversa. Em frente ao espelho.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Estrofe e estupidez.



Pois, a vida é muito curta
Para se perder cobrindo pegadas
Fique atento, não se iluda
Olhos de vidro furam as pálpebras.


segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Em Sônia.

Ah, Sônia
Já não posso domir
Com tanto espaço nesta cama
Volta, diz que me ama

Ó, Sônia
Onde está você?
Vem curar as minhas olheiras
E os meus choros de noites inteiras

Ou, Sônia,
Sai da minha cabeça
Da minha cabeceira
Antes que a pálpebra apodreça

E se não é tua a canção de ninar
Prefiro estar acordado
Pois, de nada adianta descansar
Se não te tenho ao meu lado

Pois, Sônia
Se contigo não posso estar
Com quem haverei de sonhar?

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Eu não amo você.

Eu não amo você. Não. Nem os seus cabelos esplêndidos que esvoaçam ao vento e deslumbram à vista, pendurados como moldura em volta de seu fino rosto de pintura. Eu não amo você, não. Nem o seu sorriso branco que estampa a paisagem como o mais lindo e brilhante dos sóis e me queima a pele, os olhos, as entranhas e todo o ser. Não! Eu não amo você. Nem a sua doce voz que ultrapassa as barreiras dos tímpanos e dispara o coração como o mais incansável pandeiro, batucando uma canção desarmoniosa que dói na ponta dos dedos. E para quê haveria eu de te amar? Para perder-me para sempre em tua pele macia, em teus montes, planaltos e planícies que roçam o meu relevo sem piedade, e me arrepiam a grama da nuca sem rodeios e num só olhar. Não amo também o teu olhar! Aquele que traz a malícia, uns pingos de lágrima disfarçados num manto de grandes cílios e todos os outros sentimentos escondidos atrás da cortina de íris castanho-avermelhada. E bate forte o peito, e a mente grita o teu nome, e os olhos te procuram, e a pele sente a tua falta... Ah! Eu não posso amar você.

domingo, 18 de setembro de 2011

Carta ao Amor.

Caro amigo (ou seja lá o que você for),

Envio esta carta para te pedir que desocupe a parte que sobrou do que costumava ser o meu coração. Há coisas demais aí! Não há mais espaço para ti, nem para mais nada. E nem ninguém. Não, mais ninguém.

Peço também que avise aos teus companheiros de quarto (a Saudade, a Angústia, a Ansiedade e os demais agregados) para também se retirarem, pois, estes chegaram sem avisar ou sequer tocar a campainha e as dívidas não podem ser quitadas apenas com sofrimento.

E que se retirem rapidamente, nada de esperar o Tempo, pois este é um tratante! Demora a chegar e apesar do seu bom trabalho, não vale a pena deixar o recinto em cacos esperando a sua chegada. Eu mesmo o reconstruirei!

Por fim, peço que não façam alarde e que não danifiquem mais nada por aí. Pretendo vender o recinto o mais rápido possível, para quem quer que queira, se é que há. E se não o quiserem mais, quem sabe não o abandono? Só não quero alugá-lo a mais ninguém! Não, nem pensar.

E que me retorne com qualquer resposta que não sejam lágrimas.

Encarecidamente,
Luiz Amado.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O poema vermelho.

A poetisa rastejou, manchando o chão de poesia, de essência, de sangue. De dentes cerrados, de olhos fechados, de braços abertos. A lancinante dor percorria-lhe todo o corpo e ia esvair-se pouco abaixo da palma de sua mão. Nada de dor física, não, nada dessa dor superficial: Era dor na alma; a dor dos poetas.

E gritava os seus versos com precisão, as rimas fluíam de seu próprio corpo em tinta vermelha e iam espalhar-se no assoalho dando vida ao que era inegavelmente a maior das artes. O sofrimento expresso de modo concreto, os versos cor-de-carmim manchados com brutalidade no papel onde antes pisavam.

E tudo era sentimento: Das lágrimas secas ao redor de suas pálpebras à ira de seus pulsos arrastados contra o chão. Tudo era seu, tudo era arte. Tudo era apenas um poema, mas o maior deles. E no centro da grandiosa obra tinha a si mesma; em seu rosto, nada de sorrisos, nada de fingimento. Lá estava estampada a face que sempre possuiu por dentro: Aquela manchada de lágrimas e de sangue, mas de boca aberta, entalando um grito.